Douro Editions "Através da leitura, ausentamo-nos de nós próprios e das nossas próprias vidas." Alphonse Karr
Murielle COMPERE-DEMARCY
Uma poderosa continuidade se perpetua – e se aprofunda – na obra de MCDem., a de um duplo movimento que une o mergulho no mistério do ser e a expulsão do "grito/poema primordial" nos pântanos de Uivo-Lira*. Essa dualidade dialética afasta o olhar e nos obriga a ver e admitir uma nova lucidez.
Murielle Compère-Demarcy nos permite, por um lado, testar o impulso da realidade que – ao contrário do que todas as aparências podem nos levar a crer – nunca está em repouso. Ela o desdobra em um movimento onde “giram folhas emaranhadas”, onde “o rabirruivo brilha/do cálido lar secreto das auroras/ao lar avermelhado dos crepúsculos”, “onde as palavras/sopros motores e reativos/sinalizam às asas do desejo/fugitivos e fugitivos”, onde “a escrita corre nos interstícios/do raio verde/na loucura vermelha da noite/teu poema tece sua teia lunar/(…) suas palavras de sangue e poesia azul/no oceano do texto/uma vela/inflada na cerca da vertigem/empurrada em direção ao mar aberto”… O leitor se depara, assim, com o dilema de se desprender do poema para retomar o preguiçoso cotidiano da ilusão,
Por outro lado, e na mesma linha, como as poetisas da transcendência, sua escrita é posta em contato com o que nos atravessa, fazendo assim com que a experiência se realize na alma e, a partir dela, nesta pena que "escreverá a lágrima". Numa mise en abyme desorientadora, o poema espelhado dá um grito à sua própria expulsão, à maneira do brilho, ao ponto limite do seu próprio início. Cada poeta autêntico tem um ritmo e uma visão que estabelecem a sua especificidade, a sua singularidade irredutível. Abrindo Dante, Lautréamont ou Artaud, mergulhamos num universo que pulsa segundo um único coração. O mesmo se aplica a Murielle Compère-Demarcy. Lê-la é oferecer-se a uma separação – do olhar, do coração, da mente, da respiração. Lê-la é viver uma experiência poética total, constituída pelo mergulho nos abismos do ser.
Mas isso, esse mergulho, em sua dualidade dialética, não engendra uma fusão, mas um encaixe² do ser e da realidade – ambos se unindo, mas cada um preservando sua própria alma. Estamos aqui no mais puro mistério, até mesmo um misticismo, onde se descortina essa nova aurora, que constitui “a insurreição finalmente do amor e da aurora/ que unem as margens”. Um desvelamento lúcido trouxe à luz o movimento pelo qual interioridade e exterioridade se nutrem mutuamente: “Poema-Grito/primário que se expele/Cosmos Único/Poema-Mundo/para o mundo”.
O movimento da escrita é, portanto, o destaque de um enigma, vital e, ao mesmo tempo, indubitavelmente verdadeiramente insolúvel, o da própria fonte da Palavra que nutre o poema. A poesia ilustra seu alcance – em todos os sentidos que este termo pode evocar – em versos magníficos, como: "A coluna de ar sobe e viaja/sugada pelo sopro do cosmos universal/pelo vórtice das estrelas da Linguagem/A Poesia entrega sua alma/ao lodo da fala."
Esse impulso existencial – e cósmico – semelhante ao “caos” nietzschiano que se busca fazer “virar forma”, é constantemente uma maiêutica do Verbo que cada poeta carrega – a despeito de si mesmo, sempre sem ser de modo algum responsável pelo que potencialmente reside na alma –, uma “Tempestade concebida no ventre do sol/enquanto entre lábios e febre/permanece a busca do Verbo/experimenta o Viver”. Esse “ventre do sol”, sempre em ação, deixa passar por ele constantemente a vasta energia cósmica que nutre os grandes criadores e os grandes místicos.